Religião, Estado e Saúde Pública: quando a fé não pode ditar o atendimento médico
- Karina Pinto
- 20 de out.
- 2 min de leitura

O caso da mulher que morreu no Hospital Tricentenário, em Olinda, reacende um debate essencial sobre o papel das instituições religiosas na prestação de serviços públicos — especialmente na saúde. A família denuncia negligência médica e aponta possíveis omissões no atendimento. Mas o que torna o episódio ainda mais grave é o fato de o hospital, embora vinculado a uma instituição religiosa, ser financiado com recursos públicos.
O Brasil é, constitucionalmente, um Estado laico. Isso significa que nenhuma convicção religiosa pode se sobrepor às normas da administração pública, muito menos interferir na garantia de direitos básicos, como o acesso à saúde. Quando uma unidade de saúde é mantida por uma denominação religiosa, mas atua sob convênio com o SUS, ela passa a integrar a rede pública — e, portanto, deve seguir as diretrizes técnicas, científicas e éticas estabelecidas pelo Ministério da Saúde.
A fé, para muitos profissionais, pode ser um norte moral. Mas quando decisões médicas são influenciadas por dogmas religiosos, a fronteira entre convicção pessoal e dever público se rompe. Isso é particularmente perigoso em casos que envolvem interrupção de gravidez em situações de risco, atendimento a vítimas de violência sexual, transfusão de sangue ou escolha de tratamentos paliativos — campos em que a ciência médica e a doutrina religiosa frequentemente divergem.
É preciso dizer com clareza: nenhuma instituição pode receber dinheiro público e, ao mesmo tempo, se recusar a cumprir protocolos legais de atendimento. A laicidade do Estado não é uma formalidade jurídica; é uma salvaguarda democrática que garante que cada cidadão, independentemente de crença, receba cuidado digno, técnico e humano.
O episódio do Hospital Tricentenário exige investigação rigorosa, não apenas para apurar responsabilidades individuais, mas para avaliar se a gestão da unidade respeita os princípios que regem o serviço público. A dor de uma família não pode ser reduzida a estatística, e tampouco o direito à saúde pode ser mediado pela fé.
Enquanto o Estado continuar terceirizando o cuidado público sem fiscalizar o cumprimento de seus próprios valores constitucionais, estaremos sujeitos a um paradoxo cruel: hospitais que salvam em nome da fé, mas, às vezes, falham em nome da lei.



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