Enquanto o crime organizado e a violência de gênero avançam a passos largos, o Brasil brinca de boneca
- Karina Pinto
- 19 de mai.
- 2 min de leitura

Num país em que 14,7 milhões de pessoas ainda vivem em insegurança alimentar, ou que 21,4 milhões de mulheres sofreram algum tipo de violência, parece estranho — ou até desconcertante — que uma das polêmicas mais comentadas nos últimos dias envolva bonecas hiper-realistas chamadas bebês reborn. Elas têm nome, roupa de marca, carrinho, certidão simbólica de nascimento e até "parto" encenado em vídeo nas redes sociais. (Fonte FGV e Atlas da Violência 2025)
A pergunta inevitável é: o Brasil enlouqueceu ou apenas revela, com ironia e estranhamento, o quanto somos capazes de ignorar o caos e o colapso ao redor? Os encontros de “mães reborn” em praças públicas, o uso de bonecos para furar fila preferencial em supermercados e os projetos de lei que reconhecem oficialmente o “Dia da Cegonha Reborn” expõem mais do que um modismo curioso — evidenciam o descompasso entre as urgências reais e a energia que se gasta com trivialidades.
É claro que o fenômeno tem camadas. Algumas pessoas usam os bebês reborn como forma de lidar com traumas, lutos ou o desejo de maternidade. Outros simplesmente colecionam ou veem ali uma forma de arte. Mas o que choca é a forma como a sociedade — e o próprio Estado — tem dado palco, e até reconhecimento formal, a esse tipo de entretenimento, enquanto faltam políticas públicas básicas nas áreas da saúde, educação e segurança.
Enquanto isso, projetos importantes como o enfrentamento à violência contra mulheres, o acesso à moradia e à educação básica de qualidade seguem travados, esquecidos ou cortados no orçamento. Ao mesmo tempo, vemos parlamentares sugerindo emendas constitucionais para criminalizar o aborto até em casos de estupro, enquanto dedicam tempo a homenagens simbólicas a bonecas que custam alguns milhares de reais.
É impossível não fazer a pergunta incômoda: como um país que vem enfrentando uma crise institucional com ameaças reais à democracia, ou ondas de violência rotineiras, consegue se entreter com bonecos? Que tipo de anestesia emocional nos impede de reagir ao que realmente importa?
O Brasil de 2025 é, ao mesmo tempo, uma nação que assistiu à explosão de um dos maiores esquemas de fraude já identificados no INSS, se surpreendeu com a ousadia de criminosos utilizando guindastes para desmontar e tentar roubar um reservatório de água de um residencial na Zona Norte do Rio de Janeiro, e realiza lives simulando partos de de bebês de silicone. Um país que vê o desmatamento avançar e a democracia ameaçada — mas também aprova leis para datas comemorativas que celebram fantasias.
Brincar de boneca nunca foi problema. O que assusta é o quanto se brinca enquanto o trabalho acumula sobre a mesa, e quem está deixando a vida real ser soterrada enquanto a ficção assume o controle.
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